terça-feira, 21 de junho de 2011

PEDRO HESTNES: O NOSSO IRMÃO por Luís Miguel Oliveira


Pedro Hestnes o seu rosto desta orfandade, vaga, profunda, pessoal e impessoal, que foi a do cinema português.
Era preciso explicar como O Sangue nos apanhou. Ainda nem tínhamos vinte anos, alguns de nós tinham bem menos do que vinte anos. Mas era igual: a orfandade, vaga, profunda, dispensa outros sinais para ser reconhecida. Pedro Hestnes foi o seu rosto. O rosto desta orfandade, vaga, profunda, pessoal e impessoal, que foi a do cinema português, e a dos que se fizeram adultos - ou nem tanto: apenas cresceram - com o cinema português de entre o final dos anos 80 e o princípio dos anos 2000.

E quando foi de O Sangue, aquilo apanhou-nos porque nunca tínhamos visto nada assim: um rosto que nos entendia, uma maneira de estar (por exemplo: de estar perante um estalo na cara), de falar, de se mexer, que dizia que nos conhecia e que nos ia mostrar algumas coisas sobre nós mesmos, pegando-nos gentilmente nos braços (e nos olhos). Nos olhos, sim, porque sabíamos que o mundo era a preto e branco, estava tingido pela noite e pela chuva, mas nunca tínhamos sabido ver que mesmo nesse preto e branco, nessa noite, nessa chuva, se podia encontrar algum consolo, e até (sabendo fazer bem, ou ver bem, as coisas) uma espécie de abraço. O da beleza. Pedro Costa (o realizador), sim; Martin Schäfer (o director de fotografia), com certeza. Mas quem nos mostrou o caminho, quem nos conduziu por ele fitando-nos olhos nos olhos, foi Pedro Hestnes.

Foi assim de O Sangue ao Xavier (Manuel Mozos), dez anos grosso modo (e bem reconhecemos como isto é injusto para o Agosto de Jorge Silva Melo, que é anterior, para os Lobos de José Nascimento, que é posterior, injusto para outros). Mas dez anos que se passaram (como perceberão se se derem ao trabalho de ler sobre as vicissitudes da produção de Xavier) como se nunca tívessemos saído do mesmo tempo nem do mesmo sítio. O que nos fez acreditar que Pedro Hestnes teria sempre a mesma idade, e nós também nunca ficaríamos mais velhos. É uma das coisas perigosas do cinema.

Como o Léaud dos Godards e dos Eustaches para os franceses duma certa geração, como o Luís Miguel Cintra do plano final dos Sapatos do João César Monteiro teria sido para os portugueses se em Portugal houvesse justiça de qualquer espécie, Pedro Hestnes foi o nosso amigo de cinema e no cinema, que aparecia quando se apagavam as luzes e se ligava o projector, e não lhe pedíamos mais nada e não precisávamos de mais nada. Só do projector ligado, e dele a dizer que nos conhecia e que mesmo que não vá tudo acabar bem é preciso acreditar que sim. Amigo, não: irmão. Meu irmão, irmão do meu irmão, nosso irmão. Hoje, temos lágrimas.